Ainda para homenagear o seu Lino Ribes, nesse momento dos 15 anos de seu passamento, publico com a devida autorização e créditos para sua neta, o texto que a mesma escreveu 30 dias depois do falecimento do avô Lino. Obrigado pela partilha Sandra. Gratidão eterna ao seu Lino.
Um brinde a Lino
Emílio Ribes, meu avô.
por Sandra Crochemore Ribes
Dezembro de 2005
Para elaborar
a partida de meu avô, lanço luz sobre
sua intensa presença. Com pai e filha ao retornar à Colônia Francesa, revivo
ritual compartilhado com ele ainda menina: final da jornada de trabalho, gorro
preto de crochê, dirigindo-se à escadaria da velha casa e, acompanhado por Rex,
sentava-se no último degrau a contemplar os horizontes da bela colônia – tive o
prazer de saboreá-la antes da decadência e assim a terei para sempre. Momento só
dele, sintonizado com a vida, com a ancestralidade, com o cosmos. Eu, à
espreita, devagarzinho me aproximava. Ele me acolhia e sorríamos, não dizíamos
nada; minha presença gritava “eu tô aqui,
contigo”. Nossa comunicação transcendia palavras daquele jeito que apenas
avós e netos compreendem. Na sabedoria de criança, entendia a singularidade do
vivido e o quanto marcaria minha história.
Reviver esta
emoção, aliada à sensibilidade por sua partida,
fez-me compreender a tênue linha do tempo e que precisamos celebrar a vida por meio de rituais.
Um brinde à
vida em ciclos, aos rituais e a este homem! Antes, porém de erguermos nossas
taças – com Vinho Ribes: elixir ancestral feito por ele, que aprendeu com seu
pai e ensinou para o meu – faço uma retrospectiva dos muitos rituais compartilhados.
Ainda na
infância, que me perdoem os abstêmios e sem fazer apologia ao álcool, fui
apresentada ao Vinho Ribes nos tenros seis meses de idade. Dizem as, naquela
época, preocupadas línguas – mãe, avó e tia – que “nem fiz cara feia” com a chupeta embebida por meu avô em seu copo.
E bem mais tarde... bem, não muito mais, ainda menina... invadia outro momento seu: cansado de tarefa braçal dirigia-se à
despensa ao lado da cozinha – eu sabia qual líquido saciaria sua sede. Colocava-me
ao seu lado enquanto ele bebia no gargalo (ora, a garrafa era apenas sua...
talvez também um pouco minha) e o observava atenta, ele me olhava e perguntava “Tu queres um golinho, guriazinha?, eu,
feliz com nosso pequeno segredo, aceitava e então ele dizia “Não devia!”, mas sorria, passava-me a
garrafa e eu bebia um pequeníssimo gole, ambos conectados no ritual milenar do
vinho.
Além desses rituais, celebro também meu avô
contador de histórias, que no repertório trazia tanto situações cotidianas e “anedotas” para agradar os netos –
ouvintes incansáveis – quanto acontecimentos reais sobre as famílias francesas
que em busca de qualidade de vida vieram para o sul do Brasil em 1880, concretizando
sua saga ao perseguir esperanças com ousadia. Ramificamos de famílias sem-teto.
Informações que mais tarde me auxiliariam a refletir sobre nossas raízes e
ampliar a criticidade, bem como a valorizar o trabalho, nossa história e a amar
uma boa conversa, uma boa leitura e a escrita.
Ler e escrever:
atividades que meu avô exercitou sempre com muito prazer. Acompanhei a
paulatina montagem de sua biblioteca (em família, zelamos por ela) e a escrita de seu diário, iniciado em 1938. Ocasião
em que escutava palavras surpreendentes de sua boca: efemérides, viticultura, hipnose, hipnotizar, vinicultura, ventríloquo... Seu palavreado enchia-me
de orgulho e curiosidade, ninguém tinha um avô
como o meu. De férias em sua casa, juntamente com prima, além de passarmos
as noites a jogar cartas à luz de velas e de lampiões, o acompanhávamos com
canecas de chá de cidrão para melhor dormirmos, encontrando energia para
enfrentar a escuridão, os muitos ruídos, estalos e silêncios – fantasmas? – e
aquele sonoro badalar do relógio. Ao despertarmos cedinho por seus espirros
escandalosos, seguidos de xingamentos pela incômoda alergia, para terror da avó
que queria preservar nosso sono, depois de ouvirmos seus diálogos animados com
os cães (ah, que companheiro o Rex!) e o ruído incessante de seus tamancos na
passarela de pedra ao lado do quarto em que dormíamos, pulávamos da cama – com
colchão de palha – e acompanhávamos sua escrita matinal, outro de seus belos rituais.
Tendo a tarefa concluída, seguia o trabalho nas adegas, com os animais ou nas
plantações. Meu avô envolvia-se de
maneira especial com animais, com flores e... com seus botões... mesmo moço era
possível surpreendê-lo a conversar consigo,
principalmente quando angustiado. Ocasiões em que ouvíamos “coisa-pau!”, nunca proferida por criatura alguma. Expressão que em
família proferimos em celebração a ele.
Antes de
brindarmos a ele... Revivo os festivos almoços de domingo quando, depois de
chegarmos à Colônia e termos cumprimentado a todos – não se tolerava o
contrário e hoje agradeço este ensinamento, pois no coletivo “cumprimentar”
significa acolher cada ser em sua existência – íamos, os netos, em expedição às
janelas da parte elevada da casa para descobrir e dar as primeiras lambidas na
sobremesa do dia. Ainda posso sentir o aroma, o colorido e o sabor de sagus (de
vinho) com merengue, pudim de laranja, cremes e tortas de nozes. Sentar à mesa,
servir-se e comer naquela intensa conversa – em que todos falam ao mesmo tempo
e por incrível que pareça todos se entendem – consistia noutra aventura. Eu
tinha o prazer de ficar perto de meu avô
e orgulhava-me muito disso, era o meu lugarzinho.
Avô, avó, tio, tia, primos e primas, pai, mãe, irmãos... todos em volta da távola – que não era redonda, mas
retângulo de madeira com bancos imensos. De quando em vez algo inusitado, como
nosso Chevrolet 47 (nasci em 64... pesem a idade, minha e do veículo!) pretíssimo
passar autônomo pela janela e atirar-se no lago enquanto almoçávamos (corremos ensandecidos
atrás de meu pai, que corria na tentativa de detê-lo... mas voltamos para
almoçar e beber vinho... a tarefa de
pescá-lo ficaria para mais tarde), visitas inesperadas de vizinhos como Seu
Miguel, inusitadas presenças de compradores de vinho e, efeitos desastrosos
(hoje engraçados) devido aos goles a mais de vinho. Numa dessas ocasiões, tio e
pai “alegrinhos”, depois de alguns copos, um na direção, outro de co-piloto no
Buick 1936 (pasmem!) à noite, na estradinha que nos ligava à Vila Nova, sobre os
protestos de mãe, tia e olhos infantis arregalados (não me definia entre
assustar ou gargalhar) adentrávamos no milharal do Fidirico (leia-se Frederico
Peverada) ao invés de permanecermos na reta; o co-piloto estimulava “Toca fundo, meu cunhado!”. Tocamos
fundo... no milharal. Mas o final foi feliz. Celebro aquelas experiências mais alegrinhas da família, mas também o
fato de nunca ter visto meu avô passar-se na bebida. Ele sabia de seu limite...
e estava sempre por perto.
Antes de
erguermos as taças, falemos de um avô que em minha adolescência, homem de 1910 de
certa forma conservador, instigou-me a questionar atitudes políticas arbitrárias
que afetavam os direitos de cidadania, bem como inspirou-me com contos sobre
mulheres fortes da família. Encantavam-me seus relatos sobre a avó Pastorello –
parteira que a cavalo ia ao encontro das parturientes a qualquer hora, em
locais pitorescos, ultrapassando trilhas, arroios e sangas nem sempre
acompanhada – suas histórias sobre a prima Diva (esta eu conheci) que batia na
mesa ao posicionar-se quanto à situação política brasileira e bradava “por revolução”. Tradicionalmente “de direita”, instigou-me a
refletir, a duvidar, a questionar e a expressar-me, situando-me noutra dimensão
política. Os modelos fortes de personalidades femininas, transmitidos por ele, aliados
a outros tantos dos clãs Crochemore, Escallier e Arndt deram suporte à minha
identidade.
Antes de brindarmos,
falemos de sua presença nos últimos tempos, ambos mais velhos e cientes da
grandeza e das fragilidades nossas,
de cada indivíduo, inerentes ao viver.
Acompanhar suas limitações físicas deixava-me triste em função da perda de seus
grandes prazeres: residir na Colônia Francesa ... ler, escrever, classificar
suas reportagens de jornal, atualizar seu diário, cuidar da biblioteca... tomar
a taça de vinho nas refeições... caminhar com as próprias pernas. Tudo muito
normal para um sujeito de 95 anos, diziam os observadores, mas ameaçador demais
para sua sensibilidade e lucidez e para nós que o amamos.
Um brinde ao
Seu Lino, que em cada uma de nossas provisórias despedidas – moro 750 Km distante
– provocava-se e provocava-me, provocando o sagrado: será que chegarei ao meu
aniversário, será que nos veremos novamente? Sabíamos que sim. Porém, em julho,
ao me despedir, captei não-vida em seu olhar... Ele apenas me abraçou e desejou
boa viagem. Desta vez, sim, sabíamos que era a derradeira despedida. Não vi mais meu avô... e sua presença está mais
forte do que nunca.
Peguemos
nossas taças de Vinho Ribes! Um brinde ao Lino, que das raízes lançou-se ao
horizonte, não sem medo, mas permitindo-se apagar
aos pouquinhos. Um brinde também a seus filhos – pai e tia – que transcenderam
ao assumir com sabedoria a função de pais de seu pai. Sim, finalmente ergamos
as taças e brindemos a Lino Emílio Ribes – autodidata, pesquisador,
historiador, contador de histórias, escriba,
fazedor e apreciador de vinho, agricultor, mas principalmente: meu avô: sentado eternamente na escadaria da velha casa na Colônia Francesa a
afagar o Rex e contemplar o pôr-do-sol... Comigo eternamente a admirá-lo... Agora
ao lado de minha filha.
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