domingo, 3 de junho de 2018

Artigo: Criando ferramentas para pensar a Memória Social através dos acervos culturais da Colônia Francesa de Pelotas/RS

Criando ferramentas para pensar a Memória Social através dos acervos culturais da Colônia Francesa de Pelotas/RS

 

Fonte: BETEMPS, Leandro Ramos. Criando ferramentas para pensar a Memória Social através dos acervos culturais da Colônia Francesa de Pelotas/RS. In: Anais do Seminário de Metodologia da Pesquisa em Arte. UFPel, 2008. Palestra feita em 03/06/2008.  

 


O presente texto pretende comunicar a construção metodológica que realizei para desenvolver meu projeto de pesquisa vinculado ao Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural, do Instituto de Ciências Humanas, da Universidade Federal de Pelotas, sob a orientação do Prof. Dr. Fábio Vergara Cerqueira.

Inicialmente apresento as diretrizes do projeto, depois os cuidados que tive na construção do corpo teórico e metodológico. Por fim, apresento alguns resultados obtidos e aspectos que penso serem importantes numa pesquisa social.

 

O projeto de pesquisa

Em 2000, apresentei ao Curso de Especialização em Patrimônio cultural e conservação de artefatos, da UFPel, as conclusões de pesquisa que realizei sobre os traços culturais do grupo étnico francês de Pelotas.

À época da pesquisa de campo, percebi a quantidade de elementos, carregados de memórias e simbolismos, que ajudam as famílias a fortalecerem os laços étnicos, mantendo o grupo unido há mais de 125 anos.

Problematizando, me perguntei se a partir destes fragmentos de memória seria possível compreender: o espaço, as relações, as permanências e as identidades. Com esta problematização dei início as definições e metas do projeto.

Como tema, escolhi a gestão do acervo cultural do grupo étnico. Tendo como objeto de pesquisa a própria relação entre memória social e os suportes de memória da comunidade formada pelo grupo étnico durante sua trajetória histórica.

Meus problemas são saber quais os suportes de memória a que o grupo se remete? E como esse acervo de suportes mantém a memória social do grupo, conta sua história e constrói a identidade étnica no tempo?

Como objetivo geral, busco identificar e analisar elementos que evocam e/ou representam a memória social que perpassa a História da comunidade étnica da Colônia Francesa de Pelotas.

E como objetivos específicos, investigar e identificar os elementos indicados pelo grupo como suportes da memória social. Catalogar e inventariar os suportes orais, visuais e materiais, que conta a história e a memória social, com base no suporte escrito. Analisar e contextualizar o inventário constituído, para revelar aspectos que evoquem a memória, a história ou a etnicidade do grupo.

Suportes de memória social, História cultural e identidade étnica francesa são as palavras-chave que indicaram o título do trabalho: “Suportes de Memória Social, História e Etnia: os acervos culturais da Colônia Francesa de Pelotas-Rs”.

 

A construção teórica da pesquisa

O primeiro passo foi buscar todas as informações e discussões possíveis referentes ao tema. Uma revisão bibliográfica foi essencial. Com isso busquei obras sobre imigração, colonização e História, tanto em Pelotas, como no Rio Grande do Sul, Brasil ou mesmo na França. Pela minha formação acadêmica priorizo a historicidade como base de análise dos suportes, por entender que ela é quem dá significados e contextos aos suportes aproximando os indivíduos, criando a noção de etnicidade e construindo a identidade. Com esta linha teórica busquei leituras que me apoiassem e pudessem dialogar juntas. Para isso precisei recorrer a obras sobre memória, história, etnia e temas transversais que aproximam estas categorias.

A revisão bibliográfica me deu, por exemplo, pressupostos teóricos para definir o grupo étnico, dito “francês”, como sendo o grupo de 50 famílias francesas e seus descendentes, que em 1880 fundaram a Colônia Santo Antônio, no interior de Pelotas. E entender que os suportes de memória são como pontes que ligam indivíduos separados por espaços, tempos, culturas ou grupos sociais diferentes.

A partir deste aprofundamento fui capaz de estruturar a pesquisa que levou a organização dos capítulos finais da dissertação. No capítulo 1, apresento uma reflexão teórica sobre Memória, História, Etnia e Identidade, que são as basilares do trabalho. No capítulo 2, uma reflexão teórico-metodológica dos suportes (escrito, material, visual e oral), relacionados com as basilares. O capítulo 3 contém o início da construção do objeto em si, aqui apresento um histórico da Colônia, sua memória, identidade e outros aspectos. No capítulo 4, descrevo os catálogos dos suportes citados e apresentados pelo grupo étnico, é a constituição do corpo documental. No capítulo 5, apresento os aspectos reflexivos, a análise da memória através das categorias dos catálogos e suas implicações quanto à etnia e à identidade.

 

A construção metodológica da pesquisa

Depois de estabelecer os objetivos do projeto e ter feito as leituras iniciais, passei a definir o desenrolar metodológico. A pesquisa, quanto a seu objetivo, é um estudo histórico, descritivo, explicativo. Quanto ao procedimento, é uma pesquisa bibliográfica, documental com levantamento de dados e trabalho de campo.

Tracei algumas estratégias de ação como forma de discernimento metodológico quando, por exemplo, defino a pesquisa como um estudo histórico e não como um estudo de caso. Penso que ter claro, o tipo de pesquisa que se quer realizar, é importante para evitar muitas mudanças metodológicas durante o trabalho. Alterações no projeto sempre ocorrem até o final, pois imprevistos acontecem e as fontes podem revelar coisas com as quais não contávamos. Entre estas estratégias criadas, dei atenção para as etapas metodológicas. É importante ter bem definidas as etapas da pesquisa. No meu caso, as etapas são: a coleta de dados, a leitura interpretativa destes dados, a catalogação e criação de um catálogo descritivo de suportes, a categorização e tematização dos suportes, para depois comparar as categorias e analisar como o grupo étnico francês gerencia seus suportes de memória, história e etnia.

Para analisar estes suportes foi necessário pensar a organização dos mesmos.

Os suportes de memória podem ser elementos de cultura material, visual ou oral. Eles formam um conjunto que denominei acervo cultural étnico-familiar, pois está sob a guarda de um arquivo familiar, com a função de conservação de um passado e uma identidade através da memória. Este arquivo familiar é então formado por diferentes acervos culturais que servem para avaliar o grau de compartilhamento e uso da memória social do grupo. São eles os acervos: iconográfico, material e oral. Para fazer uso destes acervos foi necessária uma revisão teórica específica para cada suporte.

Para o acervo iconográfico fui buscar os pressupostos nos teóricos da cultura visual. Pois, para analisar uma fotografia, é preciso usar operadores que revelem a visualidade, articulando a imagem, o objeto, o modo de olhar e a cultura visual dos sujeitos.

Para o acervo material foi preciso analisar a diversidade material do cotidiano contextualizando-a com suas variações de representação e de imaginário, com base nos teóricos de cultura material, sobretudo da Arqueologia Histórica.

Para o acervo oral, formado de depoimentos que como narrativa, carregam a experiência pessoal e a articulação simbólica, foi necessário buscar auxílio nos teóricos de história oral.

Para me aproximar do grupo étnico criei um roteiro de entrevista, semiestruturada, onde estipulei algumas perguntas fechadas em forma de questionário e outras abertas para que o depoente falasse mais livremente. Com as entrevistas e a observação visual, é possível acessar os diferentes suportes.

O roteiro de entrevista é uma síntese do problema da pesquisa, por isso dividi as perguntas em três blocos. O primeiro sobre as características do entrevistado, o segundo sobre sua relação com a Colônia Francesa e o terceiro sobre sua memória e suportes.

A memória social surge quando os acervos testemunham o passado e  identificam no presente. Estas duas perspectivas dependem somente do indivíduo. Ele é quem vive, necessita e lembra. Ele escolhe e se apropria de determinados suportes para contar a sua história. Visto existir essa subjetividade que diversifica e enriquece o questionamento científico, é preciso realizar uma amostragem para análise.

Nesta amostragem foram convidadas três famílias com diferentes graus de proximidade com o núcleo da Colônia Francesa: uma que sempre viveu na Colônia; outra que depois tenha saído da Colônia; e outra que tenha ido para fora do Município. Dentro de cada uma destas três famílias, fez-se nova amostragem, agora por diferentes gerações: alguém da 1ª geração (por exemplo, um avô); outro da 2ª geração (um filho); e outro de 3ª geração (o neto). Cada um destes nove depoentes tem condições de apresentar seus diferentes suportes de memória pessoal para serem inventariados: suportes de fonte material (por exemplo, construções e objetos); suportes de fonte visual (fotografia, pintura, desenhos); suportes de fonte oral (conselhos, vivências, saberes, anedotas); e suportes de fonte escrita (jornais, certidões, livros).

Cada indivíduo está inserido em grupos sociais diferentes e utiliza elementos diferentes para contar sua história pessoal ou familiar e manter suas raízes.

 

Alguns resultados

Depois da construção metodológica, a pesquisa segue as etapas práticas e chega ao momento da constituição do corpo documental. Após ter muito se exercitado para dar boas linhas e formas ao corpo teórico e metodológico. É preciso ainda ter o corpo documental muito bem definido antes de partir para a análise.

O corpo documental tem de me permitir alcançar o objeto de pesquisa, ou seja, devo ser capaz de entender por um lado o histórico da Colônia Francesa, sua memória social e identidade étnica; e por outro lado, identificar estes suportes de memória e como eles são utilizados pelo grupo.

No foco de pesquisa está a Colônia Francesa de Santo Antônio, fundada em 1880, localizada no Distrito de Quilombo (Sétimo Distrito do município de Pelotas), a distância de 35 km da cidade. Em sua trajetória história este grupo sempre buscou estratégias de sobrevivência econômica e reprodução cultural. Seu principal legado para o município foi: a fabricação de vinho, de frutos cristalizados, compotas e doces em pasta.

Para sua continuidade na fronteira étnica, o grupo fez uso de alguns traços culturais que representando símbolos e significados, vinculam indivíduos numa organização social chamada etnia. A existência de um grupo étnico não vem da presença de traços culturais. Mas, das relações e sentimentos de pertença na fronteira étnica. É por isso que não busco resgatar memória, identidade ou história. Aquelas pessoas de sangue francês não existem mais, existem sim, descendentes de famílias francesas que fazem uso de determinados suportes de memória, que são ou referenciam traços culturais que os une socialmente no presente.

Para responder ao meu problema de pesquisa é preciso cruzar as diferentes fontes (orais, materiais e visuais) e as diversas categorias de análise. É preciso dialogar a memória social com seus suportes.

 

Aspectos conclusivos

Para finalizar esta partilha das dificuldades, cuidados e experiências que tive na criação das ferramentas para meu trabalho de pesquisa, eu gostaria de chamar atenção para alguns aspectos que penso serem importantes numa pesquisa social.

Primeiro, devemos pensar nos riscos e dificuldades que o projeto de pesquisa pode ter. No meu caso, o mais significativo deles é a descaracterização do meio. Essa descaracterização não se dá por falta de interesse ou mudança cultural, o que é natural haver ressignificações e alterações de conteúdo ao longo do tempo, pois o homem é um ser em constante atualização. A descaracterização se dá por empobrecimento da zona rural e leva à mudança acelerada das referências às próprias raízes assim como das antigas adegas, fábricas e casas de pedra erguidas pelos imigrantes.

Por fim, e não menos importante estamos ligados ao grupo das Ciências Humanas ou Sociais, e isso intensifica o dever e a responsabilidade de nossas pesquisas estarem relacionadas a algum impacto social. É importante pensarmos nos resultados esperados, a que e a quem servirá nosso trabalho? Ele poderá tornar melhor a vida da comunidade e, sobretudo, de nossos depoentes?

Por isso, é interessante que nosso trabalho possa se vincular com projetos já existentes, cujos temas sejam interligados ao de nossa pesquisa. A partir de uma demanda da comunidade étnica estudada surgiu o interesse num projeto de musealização. Sem conseguir realizá-lo sozinha, a comunidade recebeu essencial apoio do poder público e da Academia, e juntos puseram o projeto em andamento. Minha intenção é de que o trabalho de pesquisa histórica e inventário possam ser utilizados na organização e gestão deste museu.

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